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quinta-feira, 2 de junho de 2016

CESAR AARÃO - You are a Ironman

INTRO

Já havia dito algumas dezenas de vezes que "nunca mais" treinaria atletas amadores.
Por uma série de motivos, achei melhor me dedicar aos outros caminhos que a Educação Física poderia me oferecer, mas atleta nunca mais.
A convivência é, invariavelmente, difícil.
Não cumprem o mínimo aceitável para darem os resultados que objetivam obter.

De todos os profissionais que procuram em suas preparações, o treinador é sempre o que mais se sacrifica, o que menos ganha e o que mais recebe críticas.
Dificilmente vemos atletas criticando seus nutricionistas, seus médicos, seus massagistas.
Tenho a impressão de que o treinador nasceu para ser uma espécie de saco de pancadas de atletas, a sua válvula de escape.
E como eu me conheço absolutamente bem e sei que sou reativo, abdiquei de atender essa clientela.
Jamais deixei de ser amigo de alguém.
Se existe algo que eu sei muito bem é diferenciar o meu trabalho profissional de minhas atividades recreacionais.
Até porque, cada um sabe as dores de suas escolhas.
E eu sei que atleta também, quando leva à sério as coisas, sofre.




Então, um determinado dia, para não deixar a palavra "nunca" ser mais forte do que as minhas vontades, decidi que se resolvesse voltar a trabalhar com atletas, que seria apenas com amigos.


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MARCO CYRINO



Marcão é um cara conhecido no triathlon de Santos.
Eu nem tinha amizade com o cara, só o conhecia de vista e através de uma tal rede social famosa entre os seres humanos.
Um certo dia o encontrei terminando um treino de corrida no Emissário Submarino. Trocamos uma meia hora de assuntos ( triathlon, evidentemente ) e ali nascia uma verdadeira amizade.
O tempo foi passando, a amizade se estreitando e um dia eu tive a feliz ideia de realizar um Meio Ironman em Santos de forma rústica, sem finalidade competitiva, apenas para possibilitar aos triatletas da baixada treinarem com alguma condição de segurança para os desafios que viriam pela frente.
Esse evento aconteceu no final de 2014 e o Marcão foi fundamental para que tudo desse certo.

Entre nossas conversas sempre ele aventava a possibilidade de experimentar realizar um ciclo de treinamentos comigo e no segundo semestre de 2015, enfim, começamos a traçar planos e metas para o Ironman Brasil de 2016.
Mas o Marco Cyrino é assunto para uma outra postagem no blog, porque esse cara se tornou mais do que um grande amigo.
Se tornou um irmão, um confidente, um parceiro daqueles que a gente reza sempre para estar por perto.
Depois eu volto pra falar dele.




CESAR AARÃO

Um determinado dia o Marcão me liga ( olha eu aqui falando dele novamente ) me alertando de que um rapaz que ele havia conversado na piscina da Krato, onde ele fazia seu treino de natação, iria me ligar.
Me disse que conversaram rapidamente e o rapaz havia perguntado se ele conhecia alguém que pudesse lhe ajudar a realizar "um sonho".
Dois dias depois, evidentemente com a indicação do Marcão, o tal rapaz me ligou.
Marcamos uma conversa rápida aqui nos banquinhos da praia, em frente de casa, no Quebra Mar.

Esse era o tal do Cesar Aarão.
O cara me apareceu dirigindo uma Honda Biz, estacionou ali mesmo e a conversa fluiu.

" Eu sou o Cesar, tenho 40 anos, tenho um sonho a realizar e gostaria que você me ajudasse. Estou inscrito para o Ironman de Florianópolis, nunca fiz triathlon e estou inscrito para a minha primeira prova daqui há quinze dias. Vou fazer o Sprint Triathlon Santa Cecilia, no Guarujá. Meus treinos atualmente incluem natação livre na Krato, treino de corrida com minha namorada na praia ( concluímos recentemente uma prova de 15 kms e de vez em quando eu faço uma aula de spinning na academia ".

Eu, de imediato, calei. Pensei comigo imediatamente: " F.............. ". Marcão não podia ter feito isso comigo. Afinal de contas, eu só treino amigos e o cara nem amigo era. Mas o Marcão me garantiu que o cara era do bem ( ou ao menos parecia ). E eu acreditei.

Era outubro. Pouco mais de sete meses entre o cara me contratar e o dia 29 de maio, data do Ironman Brasil. Achei aquilo uma loucura, com pouquíssimas chances de dar certo, mas de imediato TOPEI. Por dois motivos:

1. Eu adoro esses desafios que poucos tem coragem de encarar e aceitar com medo da possibilidade de verem seus nomes manchados se algo de errado acontecer. E as chances de algo acontecer nesse caso eram enormes. Gigantescas.
2. Jim Ward, Ironman Finisher no Campeonato Mundial do Hawaii, uma certa noite sofrendo a poucas milhas da Finish Line, quando questionado se gostaria de abandonar a prova, disse ao fiscal: "if you take off the man his dreams he will be dead", ou seja. Tire os sonhos de um homem e ele será um homem morto.

Sai daquele primeiro encontro e entre a praia e o meu prédio ( cerca de 100 metros ) eu me obriguei a estabelecer de imediato como seria a preparação do cara em provas. Pensei:

- Esse cara vai fazer o short do Santa Cecilia. Deixo ele fazer mais um, depois coloco ele pra fazer o Internacional, o meio de Pirassununga e o Iron. Nesse meio tempo, os ciclos de treinamento.

Naquele dia eu percebi que não são só atletas que choram. Postulantes à atleta também. O cara já chegou pedindo desconto no trabalho. ( rsrs ).
Ele foi embora mas logo depois me ligou. Havia esquecido que precisava comprar uma bicicleta e precisava de uma indicação ou que eu fosse com ele para comprar algo modesto mas para que pudesse iniciar os treinos e provas.
Liguei para o Robson Paterlini, que o atendeu e ele , para começar, comprou uma Vicini Road.

Se não me engano, seu primeiro triathlon lá no Guarujá ele fez de tênis e pedal finca-pé. 
( preciso confirmar com ele ). Logo depois ele comprou uma sapatilha, pedais, tomou vários tombos na garagem e, contrariando o que eu imaginava, já estava inscrito para o próximo Santa Cecilia Triathlon.
No prazo de dois meses de treino, partindo do ZERO, duas provas de short triathlon.
Na primeira, com duas semanas de treino ( absolutamente nada ) o rapaz fez 1h38min.
Na segunda, com cinco semanas, 1h24min.

Se inscreveu para uma prova do Troféu Brasil. Me pediu para competir na distância olímpica e eu deixei. 3h18min.

Aliás, um adendo. Tenho a impressão que, praticamente oito meses após o cara iniciar no triathlon e ter ido em busca de seu sonho, o sortudo só teve o pneu furado em um treino. E tenho a impressão também que até hoje ele não aprendeu a trocar uma câmara furada. Qualquer hora eu ensino pra ele.



Enfim.
As coisas foram acontecendo. Tínhamos duas programações distintas.
Onze semanas de treinamento até o final do ano com duas provas de Short Triathlon e um Olímpico e depois uma semana de descanso ( Natal e Ano Novo ).
Mais vinte e uma semanas de treinamento até o Ironman, com o Triathlon Internacional de Santos e o Long Distance de Pirassununga como provas preparatórias no meio do ciclo maior.

No final de 2015 ele já estava com o equipamento completo para o Ironman. Comprou uma Merida de carbono que era do ex-triatleta profissional Fred Monteiro e logo depois o par de rodas de carbono. Agora era preciso treinar e focar no Iron.

Logo no início conversamos seriamente e mandei ele para o Doutor Lucas Jankauskas, médico do esporte que o atendeu durante toda a preparação, e também para o Dr. Gerson Leite, da Trifosfato Fisiologia do Esporte, que realizou os testes que me deram informações e subsídios para preparar com mais cuidado toda a parte de treinamento.

Retornando ao primeiro olímpico em 2015. 3h18min.
No Internacional, dois meses depois, 2h38min. As coisas estavam indo bem.

Mas era chegada a hora de entrarmos na parte crítica do treinamento, onde os volumes aumentariam consideravelmente e a tênue linha que separa o sucesso do fracasso cresceria exponencialmente. Fui cuidadoso ao sentar com o Cesar e lhe alertar que o Ironman é uma prova que não aceita desaforos e o treinamento deve partir desse mesmo princípio.

Estar se sentindo bem não é uma garantia de que algum treino possa ser maior ou mais intenso. As sessões maiores precisariam serem respeitadas e muito bem dosadas.


As sessões começaram com distâncias intermediárias sempre em três estímulos semanais, um em cada modalidade.
No momento seguinte, quando as distâncias passaram a serem máximas dentro do estabelecido nos ciclos e com períodos entre seis e oito dias entre cada uma delas , separadas por quatro dias entre as modalidades ( apenas o ciclismo e a corrida ).

Não quero me alongar e a intenção dessa postagem não é a de explicar como aconteceu todo o treinamento do Cesar. Apenas pontuar rapidamente que com estratégia, disciplina e confiança e honestidade entre as partes é possível partir de algo totalmente desconhecido e se construir uma base de treinamento capaz de aproximar muito o atleta do sucesso.

Com o primeiro estágio e três semanas do segundo, Cesar partiu para o grande e desconhecido desafio de realizar o Long Distance de Pirassununga.



Tivemos o nosso grande problema a ser resolvido. 
Cesar teve dificuldades em finalizar a prova. As distâncias, apesar de serem conhecidas individualmente, naquele momento para ele era uma novidade que custou alguns dias de recuperação.
Passou por mim durante os 10kms iniciais da meia maratona em um ritmo muito aquém do esperado e ali surgiu em minha mente uma grande dúvida. Ou eu o retirava da prova para não atrapalhar a sua preparação para o Ironman ou eu o deixava terminar para que a frustração da desistência não o afetasse negativamente. 
Ele mesmo passando por mim na corrida me disse:

- Silvão. Eu vou terminar essa p.... ! 



E terminou. 7h18. Gelei. Ali, pela primeira vez, percebi que precisava rever algumas coisas da preparação. Mas guardei isso comigo.
Uma semana depois, uma inesperada caxumba o deixou fora de combate por uma semana, mas ao mesmo tempo deixou o cara com fome de treinamento e volume.

Toda a nossa preparação de transições e longos de ciclismo foi realizada no Riacho Grande porque a nossa proposta de treinamento não condizia com a Rio Santos. Essa foi uma decisão acertadíssima porque aquele circuito de 17km é duro, com muitos trechos de falsos planos e subidas sem tanta intensidade que poderia contribuir em uma preparação mais linear e sem excessos. Marcão estava sempre presente nos longos, cada um com a sua distância e intensidade a serem realizadas.

Veio o primeiro 120km. Para o Marcão, 160km. E a primeira grande bronca. Durante os primeiros 60kms, andaram juntos. Eu chamei a atenção do Cesar que o ritmo do Marcão não era o dele e que ele não aguentaria o treino. Na parada dos 60km, ele me perguntou se poderia fazer 160km também, Eu disse que não porque ele iria quebrar nos 120km. Ele riu e continuou, afinal de contas, eram apenas mais 60kms.

Ele finalizou aquele treino se arrastando. Chegou no carro, encostou a bike e se jogou no chão. Cheio de dores. Me falou que não tinha ido bem em Pirassununga e não havia aguentado um treino de 120km de bike. Imagina então 180km e mais uma maratona. Me disse que estava pensando seriamente em desistir.
Durante uns 15 min ele se recuperou, e quando sentou no banco, ouviu nos próximos 15 min uma "bronca" definitiva.
Resumindo os 15 min, " ou ele respeitava o que estava sendo proposto nas planilhas que eram cuidadosamente pensadas e planejadas ou seria melhor desistir. Ou ele respeitava os limites do corpo dele, que ainda estava aprendendo a sofrer, ou seria melhor desistir. "


Calado ele ouviu. Me parece que apreendeu. E aprendeu. Ali ele sabia que quem estava falando não era o amigo que havíamos nos tornado. Era o treinador, com experiência em competições e com muitas histórias de frustrações em competições. E que queria apenas o bem dele. E que ele fosse bem sucedido na realização daquele sonho.

Vieram outros tantos treinos maiores. 150km, 180km, 3h de corrida, 3h30 de corrida, treinos de transição ( ciclismo longo e corrida curta, ciclismo curto e corrida longa, intermediários ) e a energia mental e a força física começaram a surgir. Todo o período de treinamento sem nenhuma intercorrência (apenas a caxumba). Não houveram quedas, não houveram lesões e nem gripes ou quedas bruscas de imunidade que pudessem interromper a preparação.

Houveram muitas abdicações, tenho certeza. As negociações com a família sempre são tensas e necessárias. É preciso mudar toda a rotina de horários e alimentação, restringir diversões e prazeres, tudo em função da realização de algo grandioso que é um sonho a ser realizado.
A Tânia, sua esposa, foi a parceira ideal, sendo parte integrante desse sonho e colaborando sobremaneira com tudo. Não é fácil ficar em casa horas esperando o parceiro retornar de longos períodos de treinamento, abdicar de uma balada, de uma bebidinha, de uma diversão. Nota dez pra "dona" Tânia, como eu a chamo carinhosamente.
Dona Alaíde, psicóloga e mãe, que sempre mandava nas postagens mensagens positivas e que encharcavam de energia a mente do cara.

Seu irmão Felipe e esposa, que estiveram presentes em Floripa.
O Marcão, que foi parceiro de treinos em 80% do tempo.


Enfim, resumidamente, no último domingo do mês, 29 de maio de 2016, o Cezinha alinhava com mais algumas centenas de atletas para largar para ir em busca de seu sonho.
Nem tudo acontece sempre como esperamos e é preciso sempre estar preparado para enfrentar o desconhecido e o insondável.
Para dificultar um pouco as coisas, o dia amanheceu nublado, com chuva e muito frio.
Mas aquilo já não importava. Era preciso cumprir a missão dada.


 


E depois de 15h31min o até então "rookie" no triathlon, com apenas pouco menos de oito meses de treinamento Cesar Aarão, o Cézinha como carinhosamente eu o chamo, passou por aquele pórtico de chegada, a tão sonhada "Finish Line" para ouvir do locutor da prova a frase que tantos buscam com garra e determinação:

" César. You are a IRONMAN ".

De quebra, ainda recebeu a medalha do vencedor e recordista da prova, o canadense Brent McMahon.



Agora é só tatuar a perna e comemorar.
Parabéns, BROTHER. 

Quis e consegui ser uma pequenina parte que contribuiu dando o meu máximo para que isso acontecesse.
E aconteceu.
Sou um cara feliz e realizado por apenas um único motivo.
Te vi chegar SORRINDO.



JAMAIS TIRE UM SONHO DE UM HOMEM. ( Jim Ward ).



obs.> escrevi rapidamente essa postagem. Tão logo enriqueça de detalhes, aviso aos que compartilharam e leram.


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